quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O CONTO DA GLÓRIA


Olhar de vaca lânguida. Lábios carnosos que recheava a perfeição dentária de um sorriso tímido e provocativo. Cabelos negros azulados que escorriam ao longo de suas costas. Possuía um pigmento de pele marcada pelo sol escaldante que adquiriu na lida do dia-a-dia, a marca da camiseta era evidente quando se vestia com alguma outra roupa mais decotada, coisa rara, pois era Glória uma menina de vinte e alguns anos, pudica nos seus modos de se expor naquele vilarejo que vivia desde o dia em que nasceu. Fora sempre respeitada por todos os moradores da vila, chamado de Sertãozinho, localizado numa certa região do nordeste brasileiro. O corpo que sustenta sua estatura mediana mantinha-se na estética do mundo contemporâneo, através do esforço físico que diariamente tinha que exercer ao ajudar seu pai com o trabalho de carregamento de sacos de feijão da roça para as mercearias no vilarejo. Matinalmente Glória era despertada por seu pai, conhecido em Sertãozinho por seu rigor nos compromissos de entrega dos sacos de feijão, como Capitão Artur, que nem sequer sabia o real significado da patente de capitão que as pessoas, inclusive as crianças, o chamavam quando avistava passar com sua carroça pela vila, com seu jumentinho e Glória, sempre em cima dos sacos, parecia que exibia um troféu, passava sempre com um sorriso pronto. A rigorosidade com que Glória era controlada sempre por seu pai, a fazia acanhada no falar com as pessoas, mantinha sempre o olhar voltado para baixo, respondendo a todo e qualquer questionamento feito, corriqueiramente, sobre sua mãe, que mal as pessoas de Sertãozinho conheciam, o Capitão Artur proibia qualquer tipo de exposição da sua mulher.
A tardezinha, após seu pai guardar a carroça e ordenar que Glória alimentasse a jumentinha e dia sim dia não dar banho, ela corria pro banheiro, se aprontava e batia à porta da vizinha atrás de Anunciação conhecida como Preta. As duas foram criadas como irmãs, já que nem Glória nem Preta não possuíam irmãos. A criação de Preta foi mais liberal, comparando-se com a de Glória, pois Preta fora na adolescência criada pelo padrasto, após a morte misteriosa e trágica do seu pai. Capitão Artur de uns tempos pra cá fazia vista grossa para tal amizade, pois Preta começou a ser falada na vila depois de ter sumido um dia inteiro de casa, depois uma discussão de sua mãe com Cigano, este seu padrasto. O pai de Glória, que sempre evitava falatório na rua soubera que Preta não era mais moça na barbearia, quando foi aparar seu bigode e sua barba já grisalhos. Terminava a conversa sempre batendo no peito afirmando que filha honrada e criada, era a dele, a pequena Glória, como a chamava.
Glória adorava sentar no batente de sua calçada com Preta para ouvi-la contar as novidades dos homens, era Glória uma moça virgem que nunca tinha provado um beijo de homem. Queria saber como era cada homem com quem Preta tinha beijado nas festas que freqüentava. Ficava sempre em casa sonhando com as festas de fim de semana que Preta contava durante todos os dias da semana, sempre com algum detalhe diferente. Glória achava que os bailes tinham cheiro de morango porque a deixava sempre em estado de êxtase e Preta sempre gozava dela por tamanha inocência. Mal sabia ela do cheiro de cigarro e suor que exalava dos corpos dos homens que a puxavam pra dançar, preferia ficar Preta quieta e deixar Glória sonhar.
Sempre afoita Preta que possuía uma beleza significante aos olhos dos homens daquele vilarejo, começava a traquinar a saída de Glória para o forró do Desquite, que acontecia quinzenalmente num sítio afastado da vila e mal visto pelas famílias tradicionalistas. O forró, popularmente ficou conhecido como “desquite” por conta do número exorbitante de mulheres que pediam o desquite após saber da passagem dos seus cônjuges pelo bar de Gilda, uma prostituta que fazia vida na capital e depois de sofrer uma desilusão amorosa com um michê carioca, se afastou para a vila de Sertãozinho e assim reconstruiu sua vida.
Era noite. Glória era conduzida pela força vital de Preta. Trocaram-se as escondidas. Capitão Artur já tinha se recolhido, mas antes foi ao quarto de Glória certificar da sua dormida. Saíram as duas correndo pelo quintal, cuidando para que a jumentinha não se assustasse. Saíram pelo beco da oficina de seu Nenê que ficava três casas após a sua. A estrada de piçarra em sentido ao Varame as conduzia ao forró do desquite. Caminhando descalças para não empoeira suas sandálias de camurça. Preta sempre batia os pés com as mãos antes de entrar pela porteira de acesso ao bar de Gilda e ao galpão do forró. O batuque do forró era estridente. Seguia compassadamente, Preta, o ritmo musical, enquanto desajeitada Glória só fazia balançar de um lado para outro, olhando desconfiada toda aquela movimentação. Mulheres de maquiagem forte dançavam com despudor, agarradas aos homens em sua maioria bêbados. Glória se movimentava para não ser um corpo estranho naquele salão. Rejeitava um e outro que a convidava a dançar. Preta dançava com todos, bebendo da mesma bebida, como se fosse uma troca. Repentinamente, em meio a toda àquela movimentação Glória sentiu alguém puxar no seu braço, acreditou que fosse algum bêbado ousado e com um empurrão ela ficaria livre. Era um homem alto, sóbrio, de barba por fazer e com trajes de vaqueiro com seu chapéu de couro peculiar, mas o que chamava atenção era sua beleza escondida naqueles trajes. Tentou recusar, mas o olhar dele e sua força a imobilizava de uma certa forma, logo ela estava no meio do salão. Parecia está acolhida nos braços dele, sentiu o cheiro forte de suor, mas se satisfez por senti o cheiro de homem.
Ao abrir a porta dos fundos, tonta, Glória logo se deparou com Capitão Artur, pois naquele momento ele não seria mais seu pai, estava ele sentado num banco, alisando grosseiramente a taca que batia o jumentinho. Olhou-a com olhos cheios de lágrimas, esperou fechar a porta e gritou:
- Perdida!!!!!

Por: Alisson Meneses de Sá

Um comentário:

Arlete Souza disse...

Adorei o texto! Muito familiar ao nosso cotidiano nordestino (por mais q muitos queiram fugir dele). Menino vc vai longe! Bjs!